Navio Aquarius expõe a xenofobia europeia e o tráfico de migrantes – Por Juan Carlos Osuna

Por Juan Carlos Osuna*

O ministro do Interior e vice primeiro-ministro italiano, o ultraconservador Matteo Salvini, disse que de o Governo da França não se desculpava por suas críticas à gestão italiana da crise surgida a partir do caso do navio Aquarius – que trazia 629 imigrantes, e teve seu desembarque negado nos portos da Itália, razão pela qual foi obrigado a seguir viagem até a cidade de Valência –, Roma poderia cancelar a cúpula franco-italiana, prevista para este fim de semana (a partir de sexta-feira, 15/6).

Mas não se trata somente de ajuda humanitária para os que foram expulsos pelas guerras e matanças realizadas e/ou apoiadas pelos próprios países europeus, e sim de um enorme negócio criminoso.

O Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (ONUDC) informou que ao menos 2,5 milhões de imigrantes (cerca 375 mil na zona do Mediterrâneo) viajaram clandestinamente, como se fossem material de contrabando, segundo os casos registrados em todo o mundo durante o ano de 2016, e apontou que as redes de traficantes de pessoas obtiveram lucros de mais de 7 bilhões de dólares, o que equivale ao que os Estados Unidos ou a União Europeia destinaram nesse mesmo ano para programas e iniciativas de ajuda humanitária.

O ONUDC publicou este dado pela primeira vez, e esclareceu que o tráfico de imigrantes “segue a mesma dinâmica que outros mercados transnacionais do crime organizado”, referindo-se a que também obedecem às leis de oferta e procura. Na maioria dos itinerários também se denunciaram assassinatos sistemáticos de imigrantes, além de estupros, roubos, sequestros e escravidão.

Segundo os acordos internacionais, o tráfico de pessoas se caracteriza pela “ação de captar, transportar, trasladar, acolher ou receber pessoas, utilizando ameaças ou algum tipo de violência ou coação, o rapto, fraude ou engano, ou simples abuso de poder ou de uma situação de vulnerabilidade, ou a concessão ou recepção de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa para que tenha autoridade sobre outra com fins de exploração”.

O simples comércio já é um ilícito, e o processo termina com a chegada dos imigrantes ao seu destino, porém o tráfico implica também na exploração persistente das vítimas de alguma forma, para gerar lucros ilegais para os traficantes.

O estúdio do ONUDC destaca que apesar de a maioria da população mundial viver em seu país de origem, a população imigrante tem aumentado nas duas últimas décadas: no ano 2000 eram 173 milhões, e em 2017 já são 258 milhões.

A escassez de canais legais para tentar residir em outro país, ou os altos custos da imigração regular, levam muitas pessoas a recorrer às redes criminosas, segundo explica o estudo. Em 2017, houve quase 6,2 mil mortes de imigrantes em viagens clandestinas a outros países, das quais 58% foram por afogamento durante travessias marítimas, enquanto 19% foram vítimas de condições meteorológicas adversas ou enfermidades, 8% por acidentes em vias terrestres e 6% por homicídios. E isso considerando apenas os dados oficiais.

O Mediterrâneo é a zona mais letal, com cerca de metade dos mortos registrados no mundo todos os anos. “Observa-se o assassinato deliberado (de imigrantes) na maioria das rotas de tráfico”, aponta o informe, sem entrar em mais detalhes.

O ONUDC adverte que essas cifras “são só a ponta do iceberg”, já que “é provável que muitas mortes de imigrantes não sejam documentadas, sobretudo em rotas marítimas não vigiadas, assim como em trechos terrestres remotos ou inóspitos”.

Xenofobia e guerra de microfones

“Sem uma desculpa oficial (por parte da França), o primeiro-ministro Giuseppe Conte não faria bem indo a Paris”, disse Salvini, líder da xenófoba Liga Norte, sobre o encontro previsto com o presidente Emmanuel Macron. “Nossa história de solidariedade, generosidade e voluntariado não merece um golpe por parte dos membros do governo francês, e espero se apresente uma desculpa oficial o antes possível”, insistiu.

O funcionário também aproveitou para acusar a França de não ter aceito cerca de 9 mil solicitações de asilo da Itália que estavam incluídas no pacto de distribuição de refugiados da União Europeia. Ademais, instou Macron a passar das palavras às ações, e começar a acolher os imigrantes que pedem asilo.

Na terça-feira, o porta-voz do governo francês havia dito que a atuação de Roma foi cínica e irresponsável. Por sua vez, um representante do partido de Macron, o legislador Gabriel Attal, disse à emissora pública do Senado que a posição do governo italiano era asquerosa. O governo italiano respondeu: “não aceitaremos lições hipócritas de países que sempre olharam para o outro lado nos debates sobre imigração”.

“A disputa pelo destino do barco foi profundamente vergonhosa”, sentenciou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Filippo Grandi. “Me envergonho como europeu quando vejo que um barco tem que dar a volta e não tem um porto no qual possa atracar”, disse ele em Genebra. “O resgate no mar é sagrado, sem importar quem se encontra no barco”, sentenciou o responsável da ACNUR.

O episódio colocou em evidência a brutalidade xenofóbica das autoridades maltesas e italianas, que se omitiram diante da difícil circunstância na qual se encontrava o navio, sem mantimentos suficientes para alimentar os seus passageiros, muitos dos quais foram previamente resgatados de naufrágios, e entre os quais há sete mulheres grávidas, 129 menores de idade não acompanhados e 12 crianças pequenas.

Adicionalmente, o caso detonou uma crise no seio da União Europeia, pela falta de consensos entre seus governos integrantes acerca das estratégias para lidar com o massivo fluxo migratório procedente da África e do Oriente Médio. O que ficou claro é que a chegada ao poder de coalizões com componentes de ultradireita em vários países deteriorou ainda mais a já restrita política europeia de asilo a refugiados.

O Aquarius foi impedido de atracar nos portos italianos no domingo (10/6), e Roma insistiu para que o navio se dirigisse a Malta, algo que o governo da olha também rechaçou. Finalmente, Espanha se ofereceu a recebê-los, e o barco foi até o porto de Valência, onde se espera que chegue no sábado (16/6) durante a tarde.

Sophie Beau, da organização humanitária SOS Mediterrâneo, que opera o Aquarius, pediu aos países europeus que buscassem uma solução política aos resgates de imigrantes no Mar Mediterrâneo, que foi o local da morte de mais de 15 mil pessoas que tentaram cruzá-lo nos últimos nos últimos anos, tentando chegar à Europa. “A prioridade é criar uma frota adequada para poder realizar ações de resgate no mar. Já estamos dizendo isso há mais de 28 meses, mas ninguém nos escuta”, lamentou Beau.

Situação difícil para o novo governo espanhol

Enquanto isso, a ministra do Trabalho, Migrações e Seguridade Social espanhola, Magdalena Valerio, afirmou que o seu governo não descarta outorgar o estatuto de refugiado aos migrantes, embora tenha também pedido prudência. “Cada um tem que ter o tratamento médico, humano e jurídico correto”, assegurou ela, após ressaltar que 12 comunidades autônomas e 200 municípios se ofereceram voluntariamente a recebê-los.

Por sua parte, o chanceler espanhol, Josep Borrell, considera que a situação expõe um problema mais profundo e que ainda se encontra sem solução, que é o fato de que as fronteiras exteriores de cada Estado-membro da União Europeia também são comunitárias. “No passado, nós deixamos a Grécia sozinha nessa questão, depois a Itália e amanhã esse problema pode ser nosso. É hora de se realizar o debate de um problema que é de todos os europeus, embora se manifeste de maneira mais grave para alguns, mas que deve ser encarado de forma conjunta”, disse.

Em questões relacionadas com a migração, os partidos socialdemocratas se enfrentam a um dilema, porque aquela que seria sua posição ideológica natural choca com as percepções de sua base eleitoral tradicional. A esquerda internacionalista está, em teoria, a favor das fronteiras abertas e da solidariedade entre trabalhadores. Mas a chegada de imigrantes costuma provocar uma maior rejeição entre os segmentos da população de mais idade, e o mesmo acontece com a classe operária nativa.

Para o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), por exemplo, esses eleitorados hoje são importantíssimos. Não é de se estranhar, portanto, que a porcentagem de eleitores socialistas que considera “excessivo” o número de imigrantes na Espanha seja de 29%, enquanto que entre os do bloco mais à esquerda, o Unidos Podemos (UP), eles não são nem 14% – considerando que este segundo é seguido por eleitores mais jovens, mais urbanos e de maior poder aquisitivo. Por isso, o UP também tem mais que o dobro de simpatizantes da ideia de acolher as pessoas que solicitam asilo sem nenhuma restrição: 33%, contra 15% dos socialistas.

O gabinete do novo presidente Pedro Sánchez, como todos os demais governos socialdemocratas europeus, enfrenta o conhecido dilema atual, sobre o que é e o que pode ser a esquerda hoje em dia. O acolhimento dos imigrantes do Aquarius é só uma primeira prova, das muitas que virão.

(*) Juan Carlos Osuna é jornalista espanhol associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

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