Corruptores arrependidos não são heróis nem patriotas, são… – Por Juan Guahán

Por Juan Guahán*

Em meio a essa Argentina que se transformou num desfile de bolsas, maletas e inflação, de ex-funcionários governamentais “arrependidos”, é bom recordar que não estamos diante de heróis que merecem o tratamento de patriotas. Se tratam de malandros que se beneficiaram com seus vínculos com o poder estatal da vez, e pagando por isso.

Há duas semanas, o país assiste uma desavergonhada exposição daquilo que tem de pior. Os principais diários e canais de televisão estão ocupados o tempo inteiro com o caso das bolsas e maletas que levavam propina, subornos e contribuições de vários empresários de primeira linha, e com um discurso claro de, sempre que possível, envolver o nome de Cristina Kirchner – mesmo que das formas mais inusitada.

Esse fenômeno, com toda a importância que tem, foi claramente superado pela enxurrada de “arrependidos” que se acumularam nos corredores do quarto piso dos tribunais federais, literal e não metaforicamente, se acotovelavam para se adiantar aos colegas na possibilidade de chegar primeiro ao ato de delatar e não ir preso, melhorar sua situação processual e, no fim, ter uma sentença menor. Nessa pretensão, não perderam a chance de apontar o dedo a alguns políticos renomados.

Mas o que está realmente acontecendo? Uma fotocópia de vários cadernos, da reconhecida marca escolar “Gloria”, textos feitos com uma “escritura perfeita”, foram anexados aos autos judiciais. Os escritos, muito ordenado, carregavam chamativas informações e formavam parte do que estava instalado em boa parte do imaginário coletivo.

Um motorista e ex (ex?) policial, no papel de delator, relatou histórias nas quais contava os vários anos de práticas conhecidas desde as próprias origens da história argentina. Falou sobre os “favores ao poder”, com os quais convivemos desde que temos memória.

É claro que esta prática tem proporções e metodologias diversas. Os setores políticos, entre macristas e opositores ao atual governo (incluindo peronistas pró e anti Kirchner) envolvidos nestas denúncias não pertenciam ao mais profundo do poder econômico, e os montantes de destino foram muito significativos. É provável que aqueles que hoje os substituíram na administração estatal – e que sim formam parte do sistema de poder econômico, usem outras formas mais dissimuláveis (fuga cibernética de capitais) embora seu dano não seja menor.

Esta denúncia colocou sobre a superfície um dado imaginado, mas poucas vezes exposto: se trata da corroboração do sutil matrimônio entre as grandes fortunas e as licitações estatais. O vínculo desses grandes empresários com o poder midiático fez com que escolhessem a estratégia do “arrependimento”, para serem apresentados à opinião pública como patriotas, que estavam praticamente fazendo um favor à ética.

Sobre isso, é preciso ser claro: são bandidos, que fizeram o cálculo custo-benefício e avaliam que o caminho tomado lhes dará algumas vantagens em comparação aos que preferiram se calar.

Os “benefícios” poderão ser medidos em função da possibilidade de reter uma maior porção do fruto dos delitos cometidos, ter sensíveis melhoras na condenação final e não ter que passar pelo incômodo de dormir em condições diferentes da que já estão acostumados.

De qualquer forma, o inédito do caso, o peso econômico e político dos que estão envolvidos no baile, leva a duvidar sobre os efeitos legais do mesmo. Embora não haja dúvidas de que reforçarão a impressão coletiva sobre a origem das grandes fortunas e o uso indevido – realizado por alguns funcionários – da faculdade de exercer a administração do Estado.

Se tudo isso fosse levado realmente a sério, haveria poucos empresários e políticos capazes de atirar a primeira pedra. É possível que os membros do atual governo, cegos por suas necessidades conjunturais, sem reparar que sua contribuição poderia servir para abrir a caixa de Pandora.

Embora encurralado por uma inflação que afeta fortemente os mais pobres e por um grupo de governadores que não estão dispostos a ser o peru da ceia, o governo continua sendo incapaz de ver mais além do próprio nariz. Sequer fareja o triste final de sua aventura governamental e já quer aproveitar uma situação que possivelmente terminará envolvendo a si mesmo, pelos mesmos motivos que agora estão acusando.

Embora se possa pensar que outros setores envolvidos nessa manobra – típica de serviços de inteligência – tenham interesses, nacionais e internacionais, que hoje nos custa imaginar, o fato é que, com o sem uma condenação final, seja a kirchneristas ou macristas, o que está acontecendo é outro sopapo ao sistema institucional argentino, e o futuro dos involucrados nunca mais recuperará os brilhos de outros tempos.

O calvário dos presos “comuns”

Em momentos de tanto desespero, vale a pena esclarecer algumas questões vinculadas aos presos comuns e o sistema carcerário. É um problema que surge em consequência de um informe difundido pela reconhecida Comissão da Memória da Província de Buenos Aires, presidida por Adolfo Pérez Esquivel (Prêmio Nobel da Paz em 1984).

Neste sentido, é interessante revelar alguns dados sobre a evolução da quantidade de presos, a questão carcerária, a opinião das ruas, o que diz a nossa Constituição. As conclusões ficam por conta de cada um. O artigo 18 da Constituição argentina, em sua parte final, diz que “as prisões devem manter um ambiente de salubridade, para segurança e não castigo dos internos, e toda medida que, a pretexto de precaução, leve a mortificações acima do exigido tornará responsável pela prática do abuso aquele juiz que a autorizar”.

Esse texto pode ser complementado com vários pensamentos que pululam em diferentes estratos da sociedade, particularmente alimentados pelos grandes meios de comunicação. “A cadeia é uma porta giratória”, “os estrangeiros vêm à Argentina para delinquir”, além da ideia fortemente instalada na sociedade sobre como devemos manter uma postura defensiva diante de várias situações que nos angustiam, e para as quais devemos (segundo essa linha de pensamento) apontar um responsável e plantear imediatamente a ideia de que “ele tem que ir para a cadeia. Como se a prisão fosse a solução para todos os nossos males.

O informe da comissão diz que o ano de 2017 como “um período recorde a respeito do número de presos, torturados e mortos nas prisões da Argentina”, e acrescentam essa situação “é mais uma prova do fracasso do punitivismo e da crise do sistema penal”. Os presos, em toda a Província de Buenos Aires (a mais povoada do país) passaram de 38 mil em 2016 a mais de 43 mil em 2017.

As prisões bonaerenses alojam cerca de 90% dos presos do país. Nessas superpovoadas celas, se produziram 134 mortes durante o período observado. Os doentes de tuberculose passaram de 187 a 436, houve 2,8 mil casos de tortura por agressão e outros métodos. Enquanto isso, as delegacias bonaerenses alojaram (sempre considerando somente o ano de 2017) cerca de 10% do total de presos no seu território, mas com uma superpopulação que superou os 200% – e com isso teve 22 mortes registradas.

O número de presos na Província de Buenos Aires cresceu em 13%, enquanto o crescimento a nível nacional foi de 41%. Nos últimos 10 anos, o aumento do número de presos triplicou o do aumento da população do país.

Costuma-se dizer que nossas penitenciárias estão cheias de estrangeiros. Os dados indicam que 5,9% dos presos são estrangeiros (2017), apenas um pouco mais que a proporção de estrangeiros residentes no país: 4,8%.

Nacionalmente, dois de cada três presos são menores de 35 anos e 72% deles não terminou a escola primária – e todos esses, obviamente, são do setor mais pobre da população. Aqui temos um dos grandes paradoxos do sistema no qual vivemos. É uma autêntica fábrica de pobres, mas também tem um método para reduzir seus efeitos: encarceramento em massa. Os efeitos dessa política são evidentes, com as celas superpovoadas se transformando em verdadeiras escolas do crime.

Para concluir, deixamos mais um dado e uma tendência importante de ser destacada: a informação atual indica que a população penitenciária mantém um crescimento constante. Outro detalhe significativo é a desproporção entre os recursos públicos direcionados às políticas para a infância e à segurança. Na Província de Buenos Aires, o orçamento para a infância (0,3%) é significativamente inferior ao destinado a segurança (9%). Os efeitos são públicos e notórios.

(*) Juan Guahán é analista político e dirigente social argentino, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

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